1. A educação nas idades Antiga e Média
Apesar de muitos considerarem a proposta da educação domiciliar uma ideia nova, até o século XIX, educar os filhos em casa era a regra, e não o contrário.
Salvo algumas exceções (considerando cultura e posição social da família), durante séculos o aprendizado das crianças se deu apenas de maneira empírica, ou seja, em seu dia-a-dia, através do contato com os sujeitos mais experientes. Não havia uma sistematização do ensino: quando os pais consideravam tempo de sua filha iniciar atividades domésticas, por exemplo, sua mãe a ensinaria a varrer, arrumar a cama, arrumar a mesa, cozinhar, etc. Da mesma forma, quando do momento considerado propício para a iniciação dos filhos homens ao trabalho, o pai assumiria a postura de transmitir os conhecimentos relativos ao plantio, colheita, cuidado com os animais, caça, etc.
Diante do interesse de um jovem para com uma profissão determinada, que não a de seu pai, o procedimento seria de torná-lo um aprendiz, ou seja, o rapaz seria direcionado até um profissional que exercesse o ofício em questão, passando a ajudá-lo em suas atividades. Dessa forma, mediante as orientações do tutor e o aproveitamento das experiências proporcionadas pelo ambiente, o jovem se apropriaria dos saberes e habilidades necessários para se efetivar na função de maneira autônoma.
Conforme se pode constatar no traçado histórico feito por Manacorda (2000), até meados do século V a.C., ao contrário do que é percebido hoje, as habilidades de leitura e escrita eram destinadas somente àqueles que empregariam tais capacidades em suas atividades profissionais (ex.: diplomatas, religiosos, escribas, etc.), e não à população em geral. Além disso, tais competências eram desenvolvidas somente por sujeitos considerados adultos, mediante o direcionamento de preceptores.
Os demais conhecimentos – não relacionados diretamente ao cotidiano – eram transmitidos através de histórias, lendas, ensinamentos religiosos, etc. Essa transmissão, quase que em sua totalidade, ocorria de maneira oral – o que permitia a apropriação por parte de um grande número de sujeitos, mesmo os considerados iletrados ou incultos.
Conforme Marrou (1990) e o próprio Manacorda (2000), em determinados momentos da história ocorre o surgimento de instituições ou centros de ensino (como os gregos, por exemplo), modelo que culmina com o surgimento das escolas. Entretanto, como já afirmado acima, mesmo com a possibilidade de uma educação institucionalizada (destinada, na maior parte dos casos, aos religiosos, nobres e ricos), até o século XIX, a instrução continua a se desenvolver, em âmbitos gerais, no seio da própria família. Isso pode ser percebido através do seguinte trecho relativo ao período colonial dos EUA:
"Através do envolvimento no trabalho diário, crianças recolhiam conhecimento de tudo, desde a produção de comida, construção, cuidado com os animais, fabricação de ferramentas, roupas, sabão, e qualquer outro recurso que precisassem. Lições necessárias para transformá-los em leitores, escritores e codificadores proficientes o suficiente para lidarem com seus próprios afazeres e crescerem para se transformarem em cidadãos responsáveis consumia uma pequena fração do tempo que é gasto hoje. Além disso, esses ensinamentos paravam quando a época exigia mais tempo no campo ou em outras atividades. As lições eram providenciadas pelos pais, irmãos mais velhos ou, talvez, uma jovem paga pela comunidade […]" (DOBSON, 2006, p. 1. Tradução livre).
Pode-se concluir, pelo panorama apresentado até aqui, que o cerne da educação domiciliar é uma realidade consideravelmente mais antiga do que a escolar (e, com certeza, anterior à própria educação escolar), o que também é corroborado por Mike Smith:
"Nos tempos coloniais, a maioria das pessoas era ensinada, ou no lar (homeschooled) ou em pequenas escolas comunitárias. É justo dizer que, se você tivesse o dinheiro necessário, é provável que contrataria um tutor particular. As famílias mais abastadas reconheciam que a melhor forma de educação era o método tutorial um-a-um ou, como o conhecemos hoje: homeschooling" (SMITH, 2006, p. 1. Tradução livre).
Cabe ressaltar que, nesse caso, o autor se refere, especificamente, a um tipo de educação domiciliar que não é ministrada pelos próprios pais, mas por um preceptor contratado.
De acordo com Dobson (2006), seja uma instrução efetivada pelos pais ou por tutores, o caráter domiciliar da educação marcado até o século XIX demonstra um estilo de vida fundamentalmente centrado na família. O que, por sua vez, caracteriza uma sociedade intimamente relacionada à família, sua constituição e lógica.
2. A educação nas idades Moderna e Contemporânea
Segundo Manacorda (2000), com a chegada da modernidade, tanto a família quanto a própria sociedade sofrem mudanças drásticas, influenciando forte e diretamente a forma de se educar as crianças.
A obrigatoriedade do ensino, bem como a ascensão da escola ao grau de “instituição oficialmente responsável pela educação”, modifica drasticamente a organização e a lógica que constitui a sociedade, fazendo com que esta seja conformada segundo o modelo que se encontra hoje.
A atual forma de organização social, presente há décadas, foi assimilada pela mentalidade coletiva de tal maneira que, hoje, os processos criados (mesmo os mais absurdos) são considerados legítimos e, até mesmo, naturais (como receber auxílio médico somente mediante o necessário pagamento – seja diretamente ou por meio dos impostos).
Essa naturalização da realidade aliena a sociedade ao ponto desta ficar inerte, permitindo que “outros” produzam a história. Entretanto, em todos os momentos históricos surgiram aqueles que optaram por não aceitar a realidade como a encontravam, almejando e concentrando esforços em prol de uma transformação (no que pesem as críticas, Karl Marx ou Chê Güevara são exemplos dessa não-aceitação do statu quo social). Dessa forma, diante da imposição do modelo escolar de educação como o único legítimo, surgiram opositores que procuraram dar uma resposta a essa lógica institucionalizada.
Em 1971, o estudioso Ivan Illich publica sua obra mais famosa: Sociedade sem escolas. Nesse livro, Illich faz uma dura crítica, não somente à escola, mas a toda lógica institucionalizada produzida pela sociedade moderna. Apesar de não ser um defensor da educação domiciliar, sua contribuição é consideravelmente valiosa quando da discussão sobre o “monopólio” da escola enquanto responsável pela instrução oficial.
Em se tratando de aprendizagem, Illich (1985, p. 36) afirma que
"A maior parte da aprendizagem ocorre casualmente e, mesmo, a maior parte da aprendizagem intencional não é resultado de uma instituição programada. As crianças normais aprendem sua primeira língua casualmente, ainda que mais rapidamente quando seus pais se interessam. A maioria das pessoas que aprendem bem outra língua conseguem-no por causa de circunstâncias especiais e não de aprendizagem seqüencial. Vão passar algum tempo com seus avós, viajam ou se enamoram de um estrangeiro".
O autor também denuncia o certificado como um produto de manipulação mercadológica. Afinal, uma vez que somente os sujeitos munidos de tal documento são considerados instruídos, e que somente as escolas possuem permissão para expedi-lo, toda a sociedade fica sujeita à necessidade de ir à escola. Segundo Illich, propor que a instrução institucionalizada seja a única legitima é plausível somente a uma mente treinada para a alienação.
Com relação à obrigatoriedade do ensino escolar como ação cumpridora do direito universal à educação, Illich se manifesta da seguinte forma: “A igualdade de oportunidades na educação é meta desejável e realizável, mas confundi-la com obrigatoriedade escolar é confundir salvação com igreja” (ILLICH, 1985, p. 35). Ao afirmar isso, o autor procura demonstrar que não se pode confundir o “processo” com o “local onde se dá o processo”.
Por fim, sintetizando o pensamento de Illich sobre a sociedade escolarizada, apresenta-se a seguinte análise realizada pelo autor:
"Muitos estudantes, especialmente os mais pobres, percebem intuitivamente o que a escola faz por eles. Ela os escolariza para confundir processo com substância. Alcançado isto, uma nova lógica entra em jogo: quanto mais longa a escolaridade, melhores os resultados; ou, então, a graduação leva ao sucesso. O aluno é, desse modo, “escolarizado” a confundir ensino com aprendizagem, obtenção de graus com educação, diploma com competência, fluência no falar com capacidade de dizer algo novo. Sua imaginação é “escolarizada” a aceitar serviço em vez de valor. Identifica erroneamente cuidar de saúde com tratamento médico, melhoria da vida comunitária com assistência social, segurança com proteção policial, segurança nacional com aparato militar, trabalho produtivo com concorrência desleal" (ILLICH, 1985, p. 21).
Como já se afirmou, a proposta de Illich em oposição à institucionalização da educação não está pautada na educação domiciliar, mas em algo que o autor denomina “redes de conhecimento”. Segundo a lógica dessas redes, os sujeitos que se interessassem em adquirir ou transmitir novos conhecimentos estariam livres para fazê-lo através de um sistema de comunicação que interligaria toda a sociedade. Haveriam, ainda, centros de pesquisa e de socialização de conhecimentos, tornando o aprendizado algo livre (e não obrigatório) e intimamente ligado à subjetividade de cada cidadão.
Já em se tratando da educação domiciliar, na Idade Moderna o conceito surge oficialmente nas obras do norte-americano John Holt (que emprega o termo homeschooling). O estudioso da educação escreveu vários livros, buscando respostas – muitas vezes ousadas – para problemas característicos da instrução dada oficialmente nos EUA (e, até, em outros países).
"Em 1964, seu livro “How Children Fail” criou um alvoroço com suas observações de que forçar crianças a aprender as tornam artificialmente auto-conscientes sobre o aprendizado e reprime sua criatividade e iniciativa, fazendo-as focalizarem em como agradar aos professores e às escolas com as respostas que serão melhor aceitas" (FARENGA, 1999, p. 1. Tradução livre).
Ao final da década de 60, Holt passou a questionar a seriedade dos estabelecimentos escolares e se estes realmente poderiam ser transformados de forma a se adequarem às necessidades da sociedade. Segundo Farenga (1999), nesse momento o autor passa a procurar soluções dentro de perspectivas liberais de educação, as quais ele próprio passa a criticar em 1972, em seu livro “Freedom and Beyond”. Essa obra demonstra que o problema das escolas não é técnico, mas sim social.
"Outros autores dessa época também propuseram maneiras para alterar a escolarização compulsória. Hal Bennet escreveu um manual para operadores, em 1972, intitulado de 'No More Public School' (Escola Pública Nunca Mais), no qual explica como você pode tirar seu filho da escola pública e educá-lo em casa. Em 'The 12-Year Sentence' (A Sentença dos 12 Anos), de 1972, uma coleção de ensaios foi editada por William F. Rickenbacker. Um dos autores propõe que pais talentosos deveriam poder ensinar seus filhos da maneira que desejassem" (FARENGA, 1999, p. 1. Tradução livre).
Em 1971, John Holt entra em contato com a obra de Ivan Illich, e passa a se corresponder com ele. Influenciado grandemente pelas ideias de desescolarização da sociedade, no final da mesma década Holt desiste das tentativas de transformação da prática escolar, passando a buscar alternativas para a mesma.
A partir de então, o autor passa a defender a ideia de se educar as crianças em casa, longe dos problemas e vícios presentes nas instituições escolares.
Surgem inúmeras críticas contra o modelo proposto por Holt, uma vez que este não se mostrava aplicativo a toda a sociedade, mas apenas a uma pequena parcela desta. Em resposta, o autor relata o seguinte em seu livro “Instead of Education: Ways to Help People Do Things Better” (1976):
"Alguns podem dizer que essa 'via' seja injusta pelo fato de somente algumas crianças terem acesso a ela. Bom, se a maioria dos escravos não pudesse se livrar da escravidão, então, ninguém poderia? […]. Além disso, devemos marcar um novo caminho somente se outros o podem seguir? A 'Via às Escondidas das Crianças' (Children’s Undergroud Railroad), assim como todos os movimentos de protesto e mudanças sociais, deve começar devagar, e crescerá à medida que mais crianças participarem" (HOLT apud FARENGA, 1999, p. 4. Tradução livre).
Conjuntamente com outros estudiosos e, principalmente, famílias defensoras dessa retomada do modelo domiciliar de educação, Holt iniciou várias ações pelo reconhecimento dessa modalidade. Esse movimento ganhou força e se espalhou por todas as regiões do planeta.
Segundo Boudens (2002), atualmente o ensino domiciliar é reconhecido em todos os EUA, no Japão, e em vários países europeus. Há empresas direcionadas especificamente para a produção de material utilizado no ensino no lar e, até organizações de apoio e defesa dos interesses dos pais e alunos adeptos dessa modalidade.
A expansão do movimento iniciado por John Holt continua, produzindo (mesmo após sua morte) discussões de profunda riqueza para o ramo pedagógico. As produções sobre a educação domiciliar (tanto em prol quanto contra) continuam a se desenvolver pelo mundo. Diante disso, novamente se deve afirmar que seria desaconselhável ao Brasil manter-se inerte com relação a tal discussão.
Olá, Fábio,
ResponderExcluirAntes de mais nada gostaria de parabenizar pelo blog e pela defesa do homeschooling.
A respeito deste artigo específico, tenho a acrescentar, como um alerta aos leitores, que a escola não deve ser considerada uma "evolução" da educação integral conduzida pelos pais. Pelo contrário, foi uma contingência que ganhou espaço especialmente com a revolução industrial, quando ambos os pais (pai e mãe) tinham que trabalhar em torno de 16 horas por dia.
É importante notar que mesmo após o surgimento da educação institucionalizada, esta se restringia ao nível universitário/profissionalizante, sendo que a educação infanto-juvenil persistiu ainda por muito tempo no seio da família. São fruto dessa prática ícones como Blaise Pascal e Leonardo da Vinci.
Grande abraço,
Luiz
Muito bem lembrado, Luiz!
ResponderExcluirA educação institucionalizada, ou seja, escolar, surgiu posteriormente à "educação familiar", mas, de forma alguma como uma evolução!
Como bem colocaste, a institucionalização da educação veio como uma resposta às demandas da Revolução Industrial, no que eu chamaria de "quebra" ou "ruptura" da lógica familiar que regia a sociedade - afetando, assim, diretamente a educação.
Obrigado pela contribuição, Luiz!
Olá, amigos! Sou professora de língua portuguesa, especialista em fundamentos teórico-metodológicos de ensino e mestre em literatura, atualmente trabalho com a orientação de pais e alunos na educação domiciliar.
ResponderExcluirRozelia Scheifler Rasia
gaya.rasia@hotmail.com