Creio
que chegou o momento de começar a explanar sobre alguns mitos que
vêm “assombrando” o universo da Educação Domiciliar, pois a
falta de informação relacionada a essas falácias vem causando
grande desconfiança naqueles que não ensinam em casa, bem como
temor naqueles que são adeptos desse tipo de instrução.
E,
para iniciar, nada melhor do que tratar do grande “bicho-papão”
do ensino em casa: a socialização. De fato,
até hoje, não tive sequer uma conversa sobre ED sem abordar esse
assunto e, portanto, é natural começar com a desmistificação
desse argumento.
Segundo
muitos “especialistas”, ensinar em casa priva a criança de um
contato social indispensável para seu desenvolvimento... Pois bem,
para começo de discussão, permitam-me oferecer uma excelente
contextualização geral sobre o tema desenvolvida por minha amiga
Leica Wada no capítulo IV de sua monografia “Educação
Domiciliar: uma opção à educação institucionalizada”,
apresentada em junho de 2011:
De longe, a hipótese mais
equivocada ao se criticar o ensino em casa é a de que esse tipo de
instrução não proporciona as experiências necessárias para que a
criança se torne um indivíduo socialmente saudável. De acordo com
os críticos, a educação domiciliar não proporciona oportunidades
para as crianças se socializarem por impedir que os alunos estejam
no ambiente escolar institucional, interagindo com outras crianças
da mesma idade. Muitos daqueles que se opõem à educação
domiciliar, inclusive, acreditam que a instituição escolar é o
único lugar que proporciona oportunidades sociais específicas. Em
outras palavras, eles acreditam que, se as crianças não estão
tendo experiências sociais na escola, não estão se socializando de
forma alguma (WYATT, 2008).
Em um primeiro momento esse
argumento tende a parecer lógico, pois o ambiente escolar apresenta
possibilidades de interação social nas quais a criança irá
precisar se relacionar com pessoas muito diferentes, com valores,
vivências e ensinamentos diferentes do seu. Entretanto, ao
analisarmos esse tema com um maior aprofundamento, percebemos que há
um certo equívoco em seu interior. Mesmo que a escola se mostre um
ambiente socializador, o que os críticos aparentemente ignoram é o
fato de a humanidade ter se socializado muito antes da matrícula
obrigatória e, inclusive, muito antes da própria criação da
instituição escolar. Durante milênios, o desenvolvimento das
habilidades sócio-afetivas ocorria no contexto da própria família
e da comunidade que circundava a criança. É fato que, em termos
históricos, a educação institucionalizada é relativamente nova
para a condição humana. E, mesmo no início da existência da
escola enquanto ambiente educador, era através do ambiente familiar
que as crianças aprendiam a grande maioria de suas habilidades de
socialização (KOCHENDERFER, 2011).
Outro aspecto que precisa ser
compreendido diz respeito à postura dos pais que ensinam em casa.
Questiona-se se as crianças que recebem a instrução em casa seriam
capazes de contribuir para a sociedade ou se tornariam isoladas,
atuando como introvertidas na sociedade, incapazes de lidar com os
acontecimentos mais complexos do mundo real, desajustadas, reclusas
sociais, ou fora de sintonia com a sociedade (REED apud
CHATHAM-CARPENTER, 1992). Contudo, o simples fato de os pais terem
optado pela educação domiciliar já demonstra uma enorme
preocupação com a educação de seus filhos, o que leva a crer que
esses pais irão almejar a melhor forma de proporcionar aos seus
filhos todas as habilidades necessárias para a vida adulta –
inclusive, habilidades sociais.
Apesar das fortes críticas que
tentam apontar os alunos domiciliares como deficientes sociais,
diversos pesquisadores têm encontrado uma imagem extremamente
positiva com relação à socialização das crianças educadas em
casa. Segundo esses pesquisadores, crianças ensinadas em casa, não
apenas são expostas a oportunidades que promovem interações
sociais positivas, mas também são protegidas de diversas fontes de
socialização negativa (SCHETTER; LIGHTHALL, 2009).
Segundo Ballman (1987), existem
dois tipos de socialização: a positiva e a negativa. A socialização
positiva desenvolve responsabilidade, cooperação, altruísmo,
fidelidade, amor e confiança bilateral, o que desenvolve uma boa
autoestima na criança a partir de um ambiente afetivo positivo. Já
a socialização negativa baseia-se na influência dos pares
[crianças em idade aproximada], o que gera rivalidade, disputa,
egoísmo, dependência entre pares, desaprovação e desprezo, o que
molda uma baixa autoestima na criança – que responde rapidamente à
pressão do grupo. Segundo o autor, a socialização negativa é o
resultado da separação da criança de sua família de forma
prematura e dos anos de divisão obrigatória por faixa etária.
Refletindo sobre a retórica
negativa com relação à dependência dos pares, Moore (apud
CHATHAM-CARPENTER, 1992) e White (2010) sintetizam: crianças que
passam mais tempo com seus pares do que com seus pais tornam-se
dependentes dos pares. Por sua vez, isso leva à perda de autoestima,
otimismo, respeito aos pais e, até mesmo, à confiança exagerada em
seus pares. Como são divididas por faixa etária, sentem-se mais
confortáveis apenas com outras crianças da mesma idade,
desenvolvendo, essencialmente, um tipo negativo de sociabilidade, o
que gera disputa, competitividade e egoísmo.
Em contrapartida, pesquisas têm
demonstrado que crianças educadas em casa são, de fato, expostas a
um volume de contatos sociais quase tão intenso quanto crianças que
frequentam escolas. No entanto, o fator determinante nesse caso não
é o número de contatos em si, mas a qualidade da interação social
(CHATHAM-CARPENTER, 1992).
Segundo Chatham-Carpenter (apud
SCHETTER; LIGHTHALL, 2009, p. 15), “crianças educadas em casa
estão mais expostas a interações sociais positivas que promovem
comportamentos pró-sociais, em vez de interações sociais
negativas, que podem promover comportamentos sociais e atitudes
negativas”. Medlin (apud SCHETTER; LIGHTHALL, 2009) fundamentou
essa descoberta através de um estudo que analisou 70 alunos educados
em casa e 70 alunos educados em escolas. Seus dados indicam que o
autoconceito foi mais positivo nos alunos educados em casa, que
também apresentaram, de forma significativa, menos transtornos
comportamentais.
Comportamentos sociais são
desenvolvidos enquanto as crianças interagem com outras pessoas de
faixas etárias diversas. As crianças observam os comportamentos dos
sujeitos mais experientes (mais velhos) e, a partir da observação
do que podem fazer ou se tornar, aprendem a tolerar, cooperar e
aceitar as diferenças (BRONFENBRENNER; MAHONEY, 1975). “É no
constante contato com as pessoas mais experientes que a criança
começa a desenvolver as formas de comportamento mais complexas, que
caracterizam o ser humano” (SCHEBELLA, 2007). Para Vigotsky (apud
SCHEBELLA, 2007, p. 51), “a natureza humana é, desde o início,
essencialmente social: é na relação com o próximo, numa atividade
prática comum, que os homens, mediados pelos signos e instrumentos,
se constituem e se desenvolvem enquanto tal.”
Neste
sentido, uma das vantagens da educação domiciliar com relação à
questão da socialização é o fato de as crianças educadas em casa
terem mais oportunidades para interagir com pessoas de várias
idades, capacidades, etnias e diversidades socioeconômicas todos os
dias no mundo real, em vez de serem artificialmente agrupadas numa
sala de aula, na qual são obrigadas a permanecer e interagir com as
mesmas crianças, que têm exatamente a mesma idade, estão na mesma
trajetória acadêmica, são da mesma área geográfica e situação
sócio-econômica (KEITH; KOCHENDERFER; WHITE, 2011).
Segundo Schebella (2010), “o
contato com a diversidade, bem como o relacionamento com outras
pessoas é muito importante para ajudar a criança a se preparar para
a interdependência social que encontrará enquanto adulto”. A
socialização na educação domiciliar é mais abrangente do que em
escolas públicas, pois, enquanto crianças que frequentam escolas
estão confinadas em uma sala de aula juntamente com seus colegas e
um professor, as crianças educadas em casa têm a oportunidade de
viajar e aprender através de experiências práticas (MCDONALD,
2011).
Sobre o assunto, Ballman (1987,
p. 185) afirma que “a criança educada em casa tende a misturar-se
livremente com todas as idades e não apenas com um grupo de faixa
etária específica” (Tradução nossa). Corroborando com essa
afirmativa, Wensel (2010) ressalta que a socialização na educação
domiciliar ocorre de forma natural entre grupos etários diferentes.
Surpreendentemente, as pesquisas
têm demonstrado que a discriminação etária entre crianças
educadas em casa é muito rara, não havendo “panelinhas”,
sentimentos de superioridade em relação às crianças mais novas,
intimidações ou exclusão. Em vez disso, o que se pode observar é
que crianças educadas em casa se divertem ao brincar com crianças e
jovens de todas as idades e aprendem uns com os outros com
satisfação. Interações entre crianças da mesma idade também
ocorrem, mas é normal ver crianças mais velhas divertindo-se ao
brincar com outras mais novas e vice-versa.
Kaiser (2011) aponta duas
questões:
É fato que crianças que
frequentam escolas passam mais tempo ao redor de uma quantidade maior
de crianças do que aquelas educadas em casa, mas será que elas
estão se socializando? Será que elas realmente estão aprendendo a
interagir com outras pessoas? As crianças passam a maior parte do
dia na escola de forma altamente controlada, com muito pouco tempo
livre. Em muitas escolas, quando há intervalos, eles são limitados
a 15 minutos ou menos, e até mesmo na hora do almoço, as crianças
não são permitidas a falar muito (s.p. Tradução nossa).
Corroborando com essas
colocações, Keith (apud KOCHENDERFER, 2011, s.p.) afirma que “as
escolas convencionais não são propícias à socialização e, de
fato, os alunos chegam a ser punidos se eles tentarem se socializar
em sala de aula” (Tradução nossa). Além disso, o pouco tempo de
socialização que ocorre é restrito à interação dentro de uma
faixa etária muito limitada, já que as crianças permanecem
agrupadas por série. Dentro desse grupo, as crianças tendem a se
subdividir por sexo e, em muitos casos, por etnia. Essa forma de
socialização apenas ensina os alunos a se relacionarem com pessoas
com quem têm muitas coisas em comum, mas não os prepara para
interagir com uma variedade de pessoas (KAISER, 2011).
Segundo Kaiser (2011),
os problemas que existem nas
escolas com relação à socialização não são em si um motivo
suficiente para se optar pela educação domiciliar. Pois para educar
um filho em casa, os pais devem ter como foco a educação da
criança. Mas o argumento de que as crianças devem frequentar a
escola para serem socializadas e aprender a interagir é equivocado.
Conheço mais adultos tímidos, introvertidos, ou socialmente ineptos
que frequentaram a escola do que adultos que foram educados em casa.
A maioria daqueles que foram educados em casa que conheço possuem
habilidades sociais mais do que aceitáveis, adquiridas, em grande
parte, a partir da interação social no mundo real, e não na escola
(s.p. Tradução nossa).
White (2011) também afirma que
crianças educadas em casa são geralmente seguras, confiantes,
independentes e estáveis, pois compartilham relações com pessoas
de diferentes faixas etárias e origens. Em contrapartida, Piaget e
outros autores (apud CHATHAM-CARPENTER, 1992) defendem o valor da
socialização entre pares no desenvolvimento das competências
sociais da criança. Esses autores observam oportunidades nas
interações entre pares como necessárias e importantes para o
desenvolvimento de uma criança. Ao fazer isso, eles não negam o
papel dos pais na socialização, mas veem a socialização entre
pares como sendo tão importante quanto seu próprio direito –
dessa forma, suportam um modelo duplo ou de múltiplos processos de
desenvolvimento (CHATHAM-CARPENTER, 1992).
Esse modelo duplo/múltiplo pode
ser obtido sem a criança ter que, necessariamente, frequentar a
instituição escolar, dado que essa experiência pode ser efetivada
através de diversas atividades extracurriculares proporcionadas
pelos pais às crianças educadas em casa, tais como:
escolas de idiomas, esportes, música, artes, etc. Através desse
tipo de atividade, os pais estão proporcionando a seus filhos uma
diversidade de contatos sociais com pessoas da mesma idade, de idade
diferente, de diferentes origens e situações sociais, mas que
demonstram o mesmo interesse pela atividade escolhida.
Segundo Schebella (2007),
deve-se, em qualquer
instância, ter em mente o cuidado de não se permitir que a
instrução no lar “feche” a criança no microverso familiar.
Para que isso não ocorra, há inúmeras possibilidades de ações de
cunho socializador que permitiriam o contato e as trocas necessários
para o desenvolvimento infantil (2007, p. 51).
Entre as inúmeras possibilidades
capazes de proporcionar o contato social às crianças, Schebella
(2007) também sugere em seu trabalho diversas ações, tais como:
- atividades comunitárias –
rua do lazer, festas populares, trabalhos voluntários (compatíveis
com a idade da criança), etc.
- atividades esportivas –
torneios amadores, competições interbairros, escolinhas de
futebol/vôlei/xadrez…, etc.;
- atividades em espaços
públicos – praças, parques, ginásios, centros comunitários,
etc.;
- visitas – não somente a
outros integrantes da comunidade, mas a asilos, locais de trabalho
(dos pais ou outros), corpo de bombeiros, etc.;
- atividades culturais –
C.T.G’s, grupos de danças típicas, grupos de resgate
cultural/étnico, etc.;
- atividades religiosas –
participação em atividades eclesiásticas, escolas dominicais,
etc.;
- atividades em conjunto com
outras crianças instruídas em casa – há, ainda, a possibilidade
de se reunir alguns “alunos do lar” para que, juntos, assistam a
uma aula “especial”, ou para que façam trabalhos/pesquisas em
conjunto.
Como podemos notar, a educação
domiciliar não impossibilita, de fato, o desenvolvimento social das
crianças, nem as tornam reclusas sociais, como apontado pelos
críticos. Ao contrário, essa modalidade educacional se mostra
bastante positiva em termos de desenvolvimento e aprendizado social.
Entretanto, cabe ressaltar que,
como todos os demais aspectos relacionados à instrução de uma
criança no lar, é de grande responsabilidade dos pais proporcionar
ao educando o acesso às mais diversas oportunidades de contato
social, para que ele possa, então, usufruir de um desenvolvimento
social saudável.
(CONTINUA
NA PRÓXIMA SEMANA...)