segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Regulamentar ou não Regulamentar?


É muito satisfatório conseguir escrever novamente após tantas semanas (meses?!) de “silêncio virtual”. Para quem estava acostumado a escrever um artigo por semana, ficar tanto tempo sem produzir qualquer artigo é realmente desconfortável – para dizer o mínimo. Mas, agora que consegui me desvincilhar de alguns “embaraços” decorrentes do grande volume de trabalho, poderei voltar a me dedicar um pouco mais à produção de textos relacionados à ED neste meu blog. E, como primeiro texto dessa nova fase, nada mais justo do que cumprir minha (antiga) promessa de explicar de forma clara e objetiva os motivos que me levam a crer que uma regulamentação legal da ED em nosso país é, no momento, a melhor saída para as famílias que ensinam em casa.
Desde que foram iniciadas as movimentações em prol de uma legislação específica para a ED no Brasil surgiram dúvidas e questionamentos sobre esse caminho – essa realmente é a melhor forma de conseguirmos o que queremos enquanto educadores e educandos domiciliares? Nos últimos tempos, devido aos progressos alcançados nessa caminhada, essas dúvidas ressurgiram com muito mais força. De fato, essa é uma questão tão importante, tão pertinente e tão delicada que não poderíamos ignorá-la.
Conversei com várias pessoas e li textos de tantas outras que se preocupam com a possibilidade de entregarmos a ED nas “mãos” do Governo e, assim, perdermos a liberdade de ensinar nossas crianças conforme nossas próprias escolhas. Com efeito, perder a liberdade de escolha no processo de educação domiciliar seria perder a ED em si, pois a flexibilidade e a adaptabilidade (em todos os aspectos) são elementos fundamentais e estão na própria essência do ensino em casa. Portanto, essa preocupação é completamente válida e não podemos minimizá-la ou deixá-la de lado.
Se assim é, logo, não seria um risco alto demais requirir uma regulamentação legal que restringiria a liberdade educacional domiciliar?
É o que muitos acreditam, e vamos analisar cuidadosamente isso.
Mas, em primeiro lugar, gostaria de deixar claro o motivo mais forte que me faz lutar pela regulamentação legal da ED no Brasil: o anseio das famílias. Como as pessoas que me conhecem um pouco mais sabem, não sou casado e não tenho filhos. Dessa forma, apesar de minha luta pela ED, não estou inserido diretamente em uma realidade de ensino domiciliar. Como não sou pai nem aluno domiciliar, minhas ações como defensor e agente da ED correspondem diretamente às necessidades e anseios expressos pelas famílias que ensinam em casa. Enquanto não tenho meus próprios filhos e meus próprios interesses quanto à educação deles, minha missão é corresponder e defender os interesses daquelas famílias que me pedem isso. Obviamente, tenho muitas limitações e não posso fazer tudo o que gostaria (nem tudo o que as famílias gostariam), mas me esforço para realizar tudo o que está ao meu alcance para auxiliar e apoiar quem já está ensinando em casa.
Neste sentido, sou um servidor, um correspondedor, um auxiliador das famílias que ensinam em casa, e não um julgador ou determinador de como as coisas devem ser.
Diante dessa minha missão, tenho lutado pela regulamentação da ED porque muitas famílias têm expressado seu desejo de que isso seja feito. Sei que não é o caso de todas as famílias, pois tem ficado cada vez mais claro que muitas pessoas gostariam que não houvesse qualquer lei sobre ED, mas que os pais tivessem liberdade total para ensinar seus filhos do jeito que quiserem. Mas, mesmo assim, a maioria das famílias que entram em contato comigo ainda expressa seu anseio por uma regulamentação legal para que não fiquem mais à mercê do medo de serem denunciadas por educarem em casa – ressaltando: me refiro à maioria das famílias que entram em contato comigo... é possível que a realidade da maioria das famílias que ensinam em casa no Brasil seja diferente.
De fato, a inexistência de legislação específica sobre ED tem gerado dúvidas e questionamentos por parte do judiciário e levado muitas famílias a serem denunciadas por ensinar em casa. Apesar da Lei brasileira não proibir os pais de ensinarem os próprios filhos1, a falta de uma permissão explícita dá margem para os enganos. A grande maioria das famílias denunciadas acaba não sendo condenada, mas, mesmo assim, uma denúncia sempre é incômoda e prejudicial, gerando desgaste físico, emocional e financeiro aos envolvidos.
Como evitar esses prejuízos advindos de uma denúncia? A única forma é evitar a denúncia. E como fazer isso? Até o momento, a melhor solução que vejo é, justamente, uma regulamentação legal que deixe explícito o direito que os pais têm de ensinar em casa.


RESSALTANDO: Definitivamente, os pais têm esse direito. Entretanto, ele precisa ficar completamente explícito em nossa legislação.


Volto a dizer: muitas famílias têm me pedido para continuar na luta pela regulamentação para que não precisem mais ter medo de denúncias. Já perdi a conta de quantas famílias conheço que, praticamente, precisam se esconder para ensinar os filhos por medo de serem denunciadas e terem que enfrentar um processo. Nem mesmo a certeza de vitória ou de arquivamento do processo alivia o coração desses pais, pois eles sabem o quanto será penoso passar por toda a bateria de questionamentos, exigências e complicações de um processo judicial.
Como vocês podem ver, luto pela regulamentação legal, em primeiro lugar, porque esse é o desejo expresso por muitas famílias que falam comigo sobre o assunto. Caso chegue um momento em que a maioria dos lares educacionais declare um desejo contrário, ou seja, que não haja qualquer regulamentação legal, com efeito, pelo caráter de minha missão e pela minha própria consciência, não continuarei a lutar por isso. Para mim, não haveria qualquer problema nessa mudança de estratégia – inclusive, me daria menos trabalho... hehehe... Entretanto, até o momento, a maioria das famílias que conheço ainda expressa interesse/desejo por uma lei específica.
Para mim, o anseio desses pais já é motivo suficiente para continuar na luta pela regulamentação legal da ED – entretanto, este não é o único motivo...
Um segundo motivo que me leva a defender essa ideia é a perspectiva de que essa ação poderá auxiliar na organização e no desenvolvimento da modalidade no Brasil. Explico: enquanto a ED mantem-se no “limbo legal”, ou seja, enquanto o Estado e a maior parte da população não tem certeza sobre a legalidade e o reconhecimento dessa modalidade, o desenvolvimento de recursos, eventos e atividades relacionadas a ela será muito lento e truncado.
Permitam-me um exemplo prático: há mais ou menos um ano venho entrando em contato com uma editora para adquirir alguns de seus materiais didáticos para que sejam utilizados por famílias que ensinam em casa em minha região. Os materiais são ótimos e suprem muito bem as necessidades dessas famílias. Entretanto, a editora não aceitou nos vender o material justamente por ter dúvidas sobre a legalidade de nossas intenções. Por não haver uma lei específica sobre ED, os representantes dessa editora consideraram que poderiam estar sendo cúmplices de uma atividade ilegal e, por conta disso, preferiram não negociar conosco.
Vamos deixar de lado a incoerência dessa atitude e voltemos a nosso raciocínio...
Esse tipo de entrave vai continuar existindo enquanto não houver uma legislação específica sobre ED em nosso país. Vamos continuar tendo dificuldades para comprar e, até, produzir material didático, para realizar eventos maiores, para ter acesso a determinados espaços culturais, etc.
Podemos ficar sem isso? Talvez... Mas o interesse pela ED tem crescido muito em nosso país, e acredito que quanto maior for o movimento, maiores barreiras encontraremos ao tentar utilizar recursos sem a expressão oficial de legalidade sobre nossa atividade.
Em terceiro lugar, acredito na necessidade de uma regulamentação legal da ED para evitar distorções e/ou abusos no processo educativo. Gosto de pensar nisso fazendo uma analogia com o trânsito: todos temos o direito de ir e vir e de ter um trânsito seguro. Esse é um direito de todo o cidadão. Entretanto, esse direito não me permite fazer o que bem entender com meu carro, pois poderia colocar em risco a minha vida e a vida de outros. Portanto, para evitar imprudências ou abusos existem regras básicas que norteiam a forma de exercermos nossos direitos quanto à mobilidade. Se as atuais regras de trânsito estão corretas ou se são justas é uma discussão que deve ser feita por todos, mas é inquestionável a necessidade de normas básicas de conduta. Da mesma forma, acredito que o direito fundamental que os pais têm de optar pela ED precise de algumas normatizações básicas para evitar prejuízos para a própria família e para outros.
Porém, alguém dirá: “Mas eu não acredito que pais responsáveis, que amam seus filhos, precisem de qualquer normatização, pois sabem o que é melhor para suas crianças e só farão o que é melhor!”.
E eu digo: Concordo plenamente! Pais que amam seus filhos, que os conhecem bem e estão comprometidos com sua educação não vão cometer abusos, nem irão causar danos propositais a seus filhos ou a outras pessoas. Poderão errar, mas não farão mal de forma deliberada. Esses pais não precisam de leis dizendo como agir, do mesmo modo que um condutor consciente não precisaria das leis de trânsito para dirigir seu carro de forma segura e eficiente. Alguém que se preocupa consigo e com os outros iria dirigir em baixa velocidade, com muita atenção e da forma mais segura. Entretanto, nem todos os condutores são conscientes, e nem todos os pais realmente estão comprometidos com o desenvolvimento de seus filhos. Sempre haverá pais relapsos que enxergam seus filhos como problemas ou como oportunidades para tirar vantagens. Para estes casos, é necessário que haja alguma regulamentação para evitar os prejuízos causados por esse tipo de comportamento desumano.
Vamos imaginar: Em 2013 o Brasil reconhece a ED como uma modalidade válida e dá liberdade para cada pai guiar o processo educativo de seus filhos como bem entender. Não há regras, nem parâmetros, apenas a liberdade de se educar como quiser. Alguns meses após esse reconhecimento, surge uma denúncia de trabalho escravo. As autoridades investigam e descobrem uma pedreira com dezenas de crianças entre 5 e 7 anos trabalhando de 12 a 18 horas por dia quebrando pedras. Uma situação terrível! Entretanto, não se pode fazer nada, pois os pais de todas essas crianças as colocaram ali e afirmam que elas estão “estudando em casa”. Os pais usam esse método para ensinar as crianças conceitos matemáticos e, ao mesmo tempo, aplicam educação física.
Eles não podem fazer isso!!!
Não? O que os impede? Eles não são os pais? Não têm liberdade para ensinar os filhos como bem entendem?
Obviamente estou usando um exemplo bastante radical, mas faço isso para que fique marcado na mente de todos nós que abusos podem acontecer e que a regulamentação deve ter como objetivo evitar esses abusos. E não há como questionar: em nosso país, exemplos como o que dei são reais e, mesmo que não sejam tão comuns em todos os lugares, há centenas de outros exemplos de como pais negligentes poderiam utilizar a desculpa de ensinar em casa para causar danos a seus filhos.
Mas, agora, surge a grande questão: seria justo restringir a liberdade de pais responsáveis para evitar abusos de pais irresponsáveis? É uma grande questão, e não há respostas simples...
Arriscando uma resposta (e não creio ser uma resposta definitiva, mas minha visão neste momento), eu diria que deveríamos dividir a questão da regulamentação legal da ED em duas perguntas distintas, mas complementares:


  1. É necessário haver uma lei específica sobre Educação Domiciliar no Brasil?
  2. Como deve ser essa lei?


Dividindo a discussão entre essas duas perguntas, acredito que fica mais fácil analisar o que devemos fazer e como devemos fazer.
Para mim, pelo menos, está clara a resposta para a primeira pergunta: sim, é necessário haver uma lei específica sobre Educação Domiciliar no Brasil para: tornar explícito o direito dos pais de optarem por ensinar seus filhos em casa; e para determinar formas de evitar abusos por parte de pessoas irresponsáveis.
Já a resposta para a segunda pergunta não é tão simples, e necessita de muita análise e discussão. Inclusive, arrisco afirmar que é essa segunda questão que gera a maior insegurança para pais que ensinam em casa, levando ao medo de perder sua liberdade para escolher como ensinar e, consequentemente, ao questionamento sobre a resposta para a primeira pergunta.
Note: não haveria qualquer problema em uma lei que diga “É direito de todo o cidadão optar por ensinar seus filhos em casa”; o problema surgiria caso as regulamentações decorrentes dessa lei “podassem” os pais, impedindo as famílias de conduzir o processo educativo da forma que consideram mais adequada ou exigindo que sejam seguidos procedimentos que vão contra os valores e escolhas educacionais familiares.
Diante disso, acredito que, neste momento, nossos esforços não devem se concentrar na discussão sobre regulamentar ou não a ED, mas em debater qual deveria ser a forma, as bases fundamentais e os limites da(s) lei(s) referente à educação domiciliar no Brasil.
Vejamos algumas perguntas que precisam ser respondidas sobre isso:


  1. que situações receberão RECONHECIMENTO LEGAL como educação domiciliar?
  2. que condições poderiam SUSPENDER O DIREITO de uma família ensinar em casa?
  3. será necessário algum REGISTRO oficial do aluno domiciliar?
  4. como ocorrerá a CERTIFICAÇÃO do aluno domiciliar?
  5. qual será o papel do Estado junto à educação domiciliar? Meramente REGULADOR? AVALIADOR? DETERMINADOR? COLABORADOR?


Enfim... há um número enorme de questões que precisam ser respondidas quanto ao “como deve ser a lei”. Mas, independente dessas questões e de suas respostas, pessoalmente, considero que elas não deveriam nos levar a questionar os benefícios da existência de uma lei específica sobre ED em nosso país.
Para terminar, gostaria apenas de ressaltar um último ponto: tratei aqui de minha opinião diante do que tenho recebido da maioria das famílias que ensinam em casa e entram em contato comigo. Porém, o que fazer em relação às pessoas que preferem a inexistência de lei? Não estou causando problemas a essas pessoas por lutar pelo interesse de outras? Bom... acredito que não. Explico: se, hoje, você considera ter o direito universal de ensinar seus filhos em casa sem interferência do Estado e está, efetivamente, fazendo valer esse direito, a existência de uma lei sobre ED não irá influenciar em nada sua escolha. Você pode continuar ensinando seus filhos como bem entender, independentemente do que a lei diga.
Você compreende? A criação de normas sobre ED não irá lhe causar problemas, pois poderão haver denúncias da mesma forma que existem agora. Uma lei sobre ED não poderia piorar a situação, apenas mantê-la como está.
O problema viria se houvesse uma lei proibindo terminantemente o ensino em casa. Isso sim seria um grande mal! E, para evitar isso, devemos continuar influenciando os legisladores para que tenham simpatia pela ED, e não antipatia...
Como muitos já disseram, se não fizemos uma lei sobre ED, corremos o risco de que outros façam, e façam contra nossos interesses.
Espero ter sido claro ao apresentar meus motivos e ao expressar tudo como minha opinião pessoal, e não como uma verdade absoluta que não pode ser questionada.
Inclusive, peço a todos que comentem sobre o que está escrito aqui, compartilhando suas visões, suas impressões e suas opiniões sobre o assunto. E vamos continuar debatendo o assunto...

Um comentário:

  1. Interessante os questionamentos levantados, pois eu como professora já trabalhei oito anos no programa do governo federam de Erradicação do Trabalho Infantil, onde famílias de baixa renda são beneficiadas com auxilio de bolsas do governo para que seus filhos não sejam obrigados a trabalhar tendo menor idade e de forma inadequada, acho pertinente considerar que deve haver uma lei específica e com critérios para quem ensina em casa como um prestação de contas, mas que seja claro, para que não hajam famílias sem consciências que venham a utilizar este recurso de maneira imprópria.

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